Quando chega o tempo da Água-Pé

QUANDO CHEGA O TEMPO DA ÁGUA-PÉ E DAS CASTANHAS. OS MAIS IDOSOS LEMBRAM-SE DO “FANFAS”e do “cara linda”.

Quando chega o período da água-pé, logo nos invade o nariz o cheirinho da castanha assada, tão tradicional no nosso país, no decorrer do Outono.
Tradições que o povo não perde, mesmo sabedor que as gerações mais modernas, passam por cima delas como que nada lhes digam, pese embora reconheçam que afinal uma castanha assada, aquece o estômago e pede imediatamente uma bebida, só que essa coisa de água-pé é que os mais novos repudiam completamente, por estarem habituados a outro tipo de bebidas, exóticas, que nada têm a haver com as nossas tradições, com os nossos usos e costumes.
Pois era por esta altura do ano nas tascas da freguesia de Barcarena e localidades vizinha, que aparecia o Ti Francisco irmão do Alfredo Pires, família bastante conhecida em Tercena e Leceia, por desde as suas raízes estarem bem ligadas à freguesia desde sempre.
O Ti Francisco era conhecido pelo povo da terra como o "Fanfas" das Castanhas, alcunha que ele até gostava, pois dava-lhe um certo jeito para as suas vendas:
Pachorrentamente retalhava as castanhas, assava-as e na realidade elas eram uma grande especialidade, pois toda a gente lhe comprava cinco tostões de castanhas e entretinha-se durante toda a tarde nas tascas, comendo-as, acompanhadas de vinho ou água pé, num bom e reconhecido petisco tipicamente outonal.
O "Fanfas" das Castanhas quando andava na rua, de saca ás costas, onde portava a sua especialidade, gritava com toda a força dos seus pulmões, não enganando ninguém.
"Podres e boas", alternando por vezes, dizendo "quentes e boas", mas na realidade ele sabia que muitas das vezes os seus frutos eram podres mas isso já ele não tinha a culpa mas sim o produtor que assim misturava-as para mais lhes render.
Assim o "Fanfas" não enganava ninguém e quando alguma aparecia mesmo tocada, já não sentia moral para reclamar, já que era o próprio a anunciar, assim, se ele as compravam, era porque estavam de acordo que misturadas viessem algumas podres.
O Ti Francisco era um homem muito falador, mas tinha um grande preço pelo sexo feminino, pese embora nunca em sua vida tivesse casado, por isso a sua alcunha, relacionava-se com o mulherio, pois ficara conhecido pelo "Fanfas", por adorar muito as mulheres e às vezes dizia abertamente junto dos seus amigos que determinada rapariga que via e que tinha um porte elegante e bonito, que havia de a conquistar e que fazia isto e mais aquilo o que obrigava as pessoas a rir, pois bem sabiam que ele já era velho e pouco entusiasmo já teria pelas raparigas, por isso, lhe chamavam o "Fanfas".
Fora militar em novo e estivera na guerra de 1914 em terras de França como muitos outros jovens da sua idade residentes na freguesia de Barcarena, mas o curioso é que ele afirmava abertamente a todas as pessoas que a guerra para ele tinha sido uma temporada muito especial:
"Vejam lá vocês que estive uma data de tempo em França na guerra e nunca ouvi um tiro".
"Que raio de guerra seria aquela para tal suceder comigo ?..."
As pessoas deixavam-se rir com estes seus ditos, pois bem sabiam que era quase impossível acontecer o que ele garantia, mas a verdade é que o "Fanfas" insistia nesta ideia, mesmo sabedoras que tinham falecido muitos jovens seus conterrâneos, abatidos pelas balas inimigas.
Ele fora sempre um feliz sortudo nesse aspecto, pois as suas fracas habilitações levaram-no a ser escolhido para serviços distantes dos campos de batalha, actuando na rectaguarda, onde o barulho das metralhadoras e canhões quase não se ouvia, por isso ele garantia que estivera na guerra mas nunca escutara o barulho de um tiro.
O "Fanfas" corria durante a semana essas terriolas vizinhas de Tercena e fazia o seu negócio e à noite preparava as castanhas, assava-as e no outro dia elas estavam ainda quentinhas e saborosas.
Em dias especiais de festa na colectividade de Tercena e bombeiros de Barcarena, ele à porta, fazia o seu negócio e vivia praticamente disto, embora a família não concordasse muito com este seu estado de vida, mas o homem gostava e então viveu uma grande temporada daquele negócio, mas a verdade é que nunca conseguiu levantar cabeça.
Para além do "Fanfas" mais tarde apareceu outro homem em Tercena, também muito típico, a vender castanhas, só que este conforme as épocas mudava de produtos:
Vinha, dizia ele, das bandas da Amadora e trazia consigo uma carripana que empurrava, onde tinha os seus produtos expostos.
Chamavam-lhe o "Cara linda", por ele ser na realidade muito feio, contudo ele consciente dessa realidade, utilizava um discurso muito curioso, só para dar nas vistas e passar a ser conhecido, pelos seus clientes habituais.
"A minha mãe teve catorze filhos e eu fui aquele que saiu mais bonito".
As pessoas riam-se à gargalhada, por saberem que ele era mais feio que a noite e ele acompanhava as pessoas em alegre rizada, porque na realidade o "Cara linda" deveria estar sentado na última fila, quando Deus Nosso Senhor passou a distribuir a beleza.
Vendia igualmente castanhas, mas este já trazia na sua carripana, um assador, e por vezes retalhava os frutos e colocava-nos a assar na presença das pessoas o que era sempre um grande incentivo para a venda.
O perfume que deixava em toda a rua, despertava a vontade das pessoas provarem as castanhas, obrigando vezes a que esperassem algum tempo até que as mesmas ficassem assadas e a grande verdade é que o "Cara linda" vendia o seu produto, governando a vida através destes rotativos negócios, sendo o que mais dava nas vistas, a Venda de Castanha na altura da água-pé e do S. Martinho.